terça-feira, 15 de abril de 2014

Ficção Científica - Mitos, Preconceitos e Estereótipos

"Assim que se fala em FC a malta parece que vê o diabo" - Fiacha o Corvo Negro


A frase pertence ao meu bom amigo Fiacha e resume na perfeição o que acontece quando os leitores encontram nas capas e contra-capas dos livros a mais leve alusão ao facto do livro que tem em mãos pertencer a essa ostracizada categoria literária que é a Ficção Científica (FC). Muito deste desprezo e repudio devem a sua razão de ser a muito mitos que se foram propagando ao longo do tempo e que ganharam estatuto de verdades incontestáveis, cristalizadas num estereótipo, que pouco terá em comum com a realidade. Convém portanto desmistificar alguns destes mitos antes de começar a tentar converter leitores à causa da FC.

Comecemos por tirar o óbvio do caminho. Tal como em todos os outros géneros literários existe FC excelente, boa, suficiente e má. Quero deixar este ponto bem assente para não ser depois acusado de parcialidade. Reconheço que muitos textos publicados são maus, mesmo muito maus, mas neste aspecto a FC é igual a todos os outros géneros literários. Citando um autor de FC, Theodore Sturgeon e mais especificamente a sua lei de Sturgeon: "90% de qualquer coisa é lixo" e na literatura esta lei é bem verdade como todos nós já tivemos certamente oportunidade de provar. Passemos então à desmistificação da FC.

A FC, a boa FC entenda-se, é composta de temáticas de conteúdo maduro. Para quem nunca leu FC isto poderá ser um choque, mas esta é a verdade. A FC vive de temas para os quais é preciso ter já uma boa bagagem, seja de vivências pessoais seja literária. É também uma literatura que além de “obrigar” a saber obriga a pensar. Obriga a pensar porque fala sobre realidades que ainda estão para chegar, ou sobre realidades que nunca chegaram, mas que são um aviso sobre a nossa e isto causa estranheza a muitos leitores que não conseguem lidar com tudo o que vai para além do que os seus olhos vêem. 

Provavelmente o maior mito da FC é que ela se resume a “naves espaciais e pistolas laser”. Quem nunca leu acha que sabe sobre o trata a FC, mas a verdade é que ela é grande, enorme nos temas que trata, tão vasta que muitos de nós que lemos FC de modo regular ainda não conseguimos ler todo o que ela tem para oferecer. Sim na paginas de muitos livros de FC vão encontrar “naves espaciais e pistolas laser”, mas também historias de amor, policiais, história alternativa, etc . Atrevo-me a dizer que a FC não é um género, mas um trans-género pois agrega outros. Mas mais do que ser um género ou trans-género ou outra coisa a FC é fonte de grandes historias.  

Falar dos mitos da FC é falar dos equívocos que muito leitores fazem concretamente quando comparam o incomparável e o cinema tem sido provavelmente uma das principais fontes deste equívoco. A ligação entre a literatura e o grande ecrã é já bem antiga e remonta ao primórdios do próprio cinema. O cinema é algo que é mais imediato e assim muitos leitores acabam por tomar o que vêem nos ecrãs com o que poderão encontrar na literatura, ora nada mais errado. As produções cinematográficas, principalmente nos dias que correm, servem para “encher os olhos” passando assim ao lado do cerne dos temas das obras que lhes servem de base. Raro é o filme que consegue fazer a conjugação da parte visual com as ideias do livro que adapta. E os que o fazem raramente fazem parte dos tops. O espectador/possível leitor acaba por assumir que os livros são igualmente vazios de conteúdo e desistem antes de sequer começar.
 
Muitos leitores já terão lido pelo menos um livro de FC, mas o preconceito das editoras e mesmo de alguns autores, em manchar as obras com esse rótulo faz com que sejam “desviados” para outros géneros. Dobram as regras, ignoram os factos e chegam mesmo a inventar novos termos para designar esses livros, mesmo que ninguém saiba o que são. Vale tudo menos admitir que se está na presença de um livro de FC. E assim se espalha o mito de que a FC não vende. Não vende devido a esta criatividade nos rótulos, exemplos não faltam. Não fosse este preconceito e talvez se descobrisse que afinal a FC vende e vende muito. Não fosse este preconceito e facilmente se perceberia que muitos do grandes autores e obras que o mundo conhece são afinal FC. Os rótulos são aqui uma arma de manipulação. Nos mais de dez anos em que já estou envolvido no mundo da literatura os livros juvenis passaram a ser rotulados de "jovens adultos" e os romances de fantasia mais dedicados ao público feminino passaram a ser designados como "romances paranormais". Repare-se que o conteúdo não mudou, os temas também não e os autores muito menos simplesmente mudou o rótulo para cativar novos públicos. Em vez de se educar o publico dá-se lhe algo de "novo" e como diz o ditado popular "com papas e bolos se enganam os tolos" e este publico, atrevo-me a dizer, gosta de ser enganado.

A FC é (talvez) o género literário mais mal entendido. Este mal entendido parte dos mitos atrás descritos  seja pela mais pura ignorância, ignorância esta que é transversal a todos, sejam eles o mais bronco dos leitores ao mais culto dos editores, seja porque é mais conveniente e fácil. 

O problema da FC é o preconceito, é tomar a parte pelo todo, é o mito, é comparar o incomparável. O leitor comum assume que sabe o que é a FC baseado num estereótipo que apenas representa um pequena parte e as vezes nem isso. Não existem formulas mágicas para mudar esta situação, apenas com o esforço de todos se poderá alterar. O principal problema será o leitor ultrapassar este preconceito, mas para o processo estar completo à que encontrar o livro certo. Costumo dizer as pessoas que dizem não gostar de ler que ainda não encontraram foi o livro certo que os faça finalmente ler, e acredito que aqui o caso é o mesmo, com a vantagem que já somos todos leitores. Para a semana conto trazer aqui um lista de livros que poderão ser a vossa porta de entrada na FC. Até lá mantenham uma mente aberta.

11 comentários:

  1. Um excelente texto, que enquadra perfeitamente os "medos" que um livro de FC desperta nos leitores.
    A mal amada FC!
    Eu confesso, como já sabes, que gosto de FC, mais de uns do que outros. como em todos os géneros e como é normal, porque todos somos diferentes enquanto seres humanos. No entanto faz-me um pouco (para não dizer muita) confusão quando vejo tanta gente dizer "Eu não gosto de FC!" ou então "FC não faz o meu género" e depois pergunta-se o que já leu de FC e a resposta é : "nada, porque não gosto!"
    Ora bem, como é possível dizer-se que não se gosta, quando ainda nem se tentou ler?!
    Como bem referiste, dentro da FC existem muitos géneros e "Provavelmente o maior mito da FC é que ela se resume a “naves espaciais e pistolas laser”. " . Acredito que a maioria das pessoas pensa mesmo assim o que é um perfeito disparate.
    Eu despenso um livro de FC que seja só naves espaciais e pistolas laser, para mim tem de ter algo mais e há tanto mais ...
    Fico a aguardar essa lista :)
    bjs

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    1. Olá Caminhante

      A FC tem na sua orbita muitos sub-géneros pode-se gostar de história alternativa e odiar space operas, e ainda assim dizer que se gosta de FC.

      Umas das frases que constava da resumo era precisamente "Não gosto de FC, mas também nunca li" e essa mentalidade ainda impera muito. Eu para dizer que não gosto de algo primeiro leio e depois já posso dizer mal à vontade, mas faço-o com propriedade.

      Olha que um livro de FC com "naves espaciais e pistolas laser" as vezes é muito mais do que a soma das suas partes..., mas sim existe muito mais.

      Para a semana a lista vais para o ar :)

      Um abraço

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    2. Eu quando referi que não gostava de um livro que seja de naves espaciais e lasers, disse só. Porque tens razão, há alguns em que o resultado é muito mais que a soma das suas partes :)
      venha a lista :) , vem aí a FL...
      um abraço também para ti

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  2. Viva Marco,

    Parabéns pelo texto, penso que está muito interessante e acima de tudo penso que pode ser útil para um genero que tem sido muito mal tratado, ou digamos que já teve dias melhores.

    Foi através de Duna do Frank Herbert que comecei a dar mais atenção e a partir dai não mais parei de ler e comprar livros em especial da coleção Argonauta como sabes.

    Jack Vance, Farmer, Haris Harrisson (será seguramente uma das tuas sugestões, tal como Morgan) Ursula le Guin, Dick, Gene Wolfe, Roger Zelazny e tantos outros grandes nomes que já tive o prazer de ler e claro quero continuar a ler quer livros destes escritores, quer muitos outros que tenho em casa para descobrir.

    Não tivesse parcerias e um ano inteiro seria dedicado a ler livros deste genero, tenho tanta, mas tanta coisa por descobrir na minha estante, mas pronto não dá para tudo.

    E são tantas as pérolas que este universo tem para oferecer, sem duvida que quero descobrir mais, divulgar e tentar que seja mais livros publicados, ainda recentemente sugeri à SDE, de onde tiraste essa citação lol, a saga do Dan Simmons que tem excelentes livros de FC :D

    Logo comento melhor, livros complexos e bem interessantes, com muitas aventuras, mundos bem construidos sem duvida que a FC é algo muito bom.

    Venham lá essas sugestões e mais comentários sobre FC :)

    Abraço e parabens

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    1. Olá Fiacha

      Uma citação que resume quase tudo e tu és a prova de que basta descobrir o livro certo para se descobrir que a FC é uma grande género.

      Evitei propositadamente usar referencias no texto para que quem o ler tenha de pensar por si arranjar as suas comparações.

      Cá espero esse comentário.

      Um abraço

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  3. (Se me permites, vou copiar o comentário que deixei no Fiacha, porque a preguiça é mãe, e temos de a respeitar :P )

    Gostei muito, muito deste teu texto Marco. Confesso que ao lê-lo me senti incomodada - no sentido de que me senti culpada com algumas afirmações que fazes. Esses preconceitos e ignorância... eu tenho disso, e muito. Mas isso não me faz não querer ler FC. Provavelmente, só atrasa. Mas eu levo a opinião do Fiacha e a tua em conta, e é definitivamente um género (ou trans-género :) ) ao qual tenho de prestar mais atenção.

    Vou ficar à espera dessa lista :)

    Beijinhos

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  4. Olá Nádia

    Obrigado pelo elogio, não só pelo óbvio, mas também pelo outro pois se te sentistes incomodada quer dizer que te fiz pensar e isso era precisamente o meu objectivo. Vamos ver se a minha lista te abre finalmente o apetite ;)

    Um abraço

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  5. Há muita ignorância, sem dúvida. Eu sou uma das mais ignorantes. Não acho que é só naves espaciais com personagens verdes carecas de metro e meio... Contudo, não te podes esquecer que apesar de se poderem propor cenários ou enquadramentos credíveis, existe sempre o gosto de cada um de nós. Por exemplo, não podes partir do pressuposto que todos nós temos de gostar de mousse de chocolate só porque o restaurante X é excelente na sua confecção apesar de haver imitações reles ou outros dignos de uma estrela Michellin. Tens de aceitar que há quem simplesmente não goste de chocolate, e portanto dos seus derivados.

    A ficção científica transporta-me para um mundo surreal, impossível. Como as minhas raízes são muito íntimas da ciência factual se encontro incongruências, as quais acabo sempre por encontrar, faz-me detestar o livro e achar que é um absurdo ou até idiota. Assim como o é a histórinha do Romeu e da Julieta, mas ainda assim, no máximo não me transporta para o futuro, mas sim para o passado ou presente, e nesses espaços temporais o conforto é muito maior porque sabes sempre com o que contar.

    Sei que é uma comparação bárbara, mas ler um livro de ficção cientifica, para mim, é como ver um filme tipo "armagedon" em que não há lei da física que não seja contrariada num epic fail :)

    Marlene

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    1. Olá Marlene

      Só é ignorante quem não querer saber e/ou aprender, portanto já neguei que és ignorante pois sei que gostas de saber/aprender ;)

      Eu não esqueço que existem pessoas com gostos diferentes dos meus e admito que as vezes sou bastante chato, mas a FC é um género tão grande que acho difícil não haver pelo menos um subgénero, ou autor ou nem que seja apenas um livro de que se goste, por isso vou expondo o que sei que existe na esperança de despertar a curiosidade.

      Alguns dos mais conceituados autores de FC foram também cientistas e divulgadores de ciência que verteram para as suas obras todo o seu conhecimento cientifico. Autores como Isaac Asimov que nos deu as Três Leis da Robótica e explorou as possíveis consequências delas ou da sua falta em verdadeiros ensaios, ou Carl Sagan que colocou milhares de jovens no caminho da Ciência como seu programa Cosmos e que nos descreveu um possível primeiro contacto com uma civilização extra-terrestre ou ainda Arthur C. Clark a quem devemos o conceito do satélite geoestacionário e que permitiu os satélites de comunicações e que hoje tem o seu nome: órbita Clarke e que em muitos livros avisa numa espécie de nota de autor o que era já possível à luz dos conhecimentos da Ciência e o que apesar de improvável tinha já uma base cientifica. Para mais a Ficção Científica é o sonho que comanda a vida (famosa frase de António Gedeão, mas que na realidade era o cientista Rómulo de Carvalho) e tem sido ela a inspirar muitas das invenções que hoje fazem parte do nosso dia-a-dia.

      Queres um "mundo surreal" e "impossível" e "absurdo"? Então desafio-te a leres livros sobre Mecânica Quântica :P Alias o cientista Richard Feynman dizia que se achamos que percebemos algo sobre Mecânica Quântica então é porque não percebemos nada e no entanto apesar de ela ser tão contra intuitiva é factual.

      Eu sou um aventureiro literário e gosto de viajar não só no espaço, mas também no tempo e sair da minha zona de conforto, mas compreendo que existam leitores que apenas gostem de livros dos quais sabem o que esperar, pois também eu regresso à minha zona de conforto para matar saudades.

      Também eu tenho dificuldades em encontrar bons filmes de FC que não contenham um epic fail, mas eles existem ;)

      Já vi que vou ter de percorrer a minha biblioteca à procura de um livro de FC que tu possas gostar :)

      Um abraço

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