sexta-feira, 25 de maio de 2012

A Manhã do Mundo ou o Preconceito na Ficção Científica




O romance de Pedro Guilherme-Moreira, A Manhã do Mundo (Dom Quixote 2011), editado sob a asa protectora desse mito vivo da edição que é Maria do Rosário Pedreira, tem como cenário o atentado de 11 de Setembro de 2011 às Torres Gémeas. A sinopse na contra capa é esta:

No dia 12 de Setembro de 2001, Ayda encontrou-se com Teresa num café de Allentown e, com o jornal aberto sobre a mesa, foi implacável com os que tinham saltado das Torres Gémeas, chamando-lhes cobardes; mas não disse à amiga que, na verdade, o que sentia era outra coisa, uma grande frustração por o marido e o filho a terem abandonado e rumado a Nova Iorque num momento em que ela se recusava a tomar a medicação e lhes tornava a vida um Inferno - e de não ter coragem de fazer o que esses tinham feito. Entre os que saltaram, estavam Thea, Millard, Mark, Alice e Solomon - todos personagens fascinantes, com histórias de vida simultaneamente banais e extraordinárias -, que o acaso reuniu no 106.º piso da Torre Norte do World Trade Center naquela fatídica manhã. Se Ayda, por hipótese, conhecesse essas histórias e o drama que eles enfrentaram, decerto não os teria insultado tão levianamente. Mas poderá o destino dar-lhe uma oportunidade de rever a História? Este é um romance admirável sobre o medo e a coragem, o desespero e a lucidez, a culpa e a expiação; mas é também um livro sobre Einstein e os universos paralelos, sobre o que foi e o que podia não ter sido. No décimo aniversário do 11 de Setembro, a memória não basta, é preciso combater o esquecimento indo para junto dos heróis que viveram o horror e compreender cada um dos seus actos - se necessário, saltar com eles, conhecer aquela que foi a manhã do Mundo.

Não dei o meu tempo por perdido, pelo contrario, gostei da historia e da escrita do autor, mas houve e há uma questão que me tem provocado alguma celeuma desde que peguei no livro.
Muitas editoras tem adoptado colocar, por exemplo por cima ou por baixo do código de barras, o género em que se insere o livro, e assim é com este, mas ao invés de dizerem que pertencia ao Romance Histórico, Filosofia, Terror, etc, este foi só classificado como Literatura Lusófona. Esta classificação é uma redundância, pois é um livro escrito por um Português, e claro não se refere ao livro, mas sim ao autor e essa informação já nós tínhamos lido na badana, portanto tempo perdido. Compreendo que a editora, a Dom Quixote tive escolhido esta "classificação" pois não é conhecida no género em que este livro se insere: a Ficção Científica, sim este é um livro de Ficção Científico.
O que mais me "escandaliza" é o facto de em todas as entrevistas e criticas que li e vi ninguém ter mencionado frontalmente o facto de este ser um livro de Ficção Cientifica, isto quando pura e simplesmente ignoraram esse facto, o que é a maioria da vezes. Existem alguns apontamentos nesse sentido, mas nunca nada de concreto é dito. A critica da Rita Bonet na revista Os Meus Livros diz que o autor deveria ter explorado "a teoria dos Universos Paralelos" (nesta revista a critica foi "arquivada” em Romance), outros falam em historia alternativa e teoria das cordas. O único que vi falar em Ficção Cientifica foi um tal de Pedro Brás Marques e apenas para dizer que "não se trata de uma investida na temática da "História Alternativa", um sub-tema tão querido ao universo da ficção científica". Este senhor claramente nunca leu Ficção Científica. Ninguém, fossem jornalistas, críticos ou leitores foram capazes de dizer que este é um livro de Ficção Científica. Acho este facto triste, triste porque mostra que as pessoas ou não conhecem o suficiente do género da Ficção Científica para o reconhecerem ou então tem preconceito em dizer e classificar este livro, ou outro que esteja na mesma situação, como Ficção Científica. Tenho muitas duvidas que a senhora Maria do Rosário Pedreira não saiba reconhecer um livro de Ficção Científica quando lê um. Tenho pena que tenham classificado este livro como sendo um romance de Literatura Lusófona, apenas por razões de marketing e medo da reacção da pessoas que tem "nojo" da Ficção Científica. Assim essas pessoas "comeram" e ainda elogiaram o "chefe", se lhes tivessem dito o que era verdadeiramente, tinham largado o livro assim que vissem esse sinal de estigma que é pertencer à Ficção Científica. À imagem do que foi feito com o nosso Nobel, José Saramago, fica mal dizer que é Ficção Científica, é mais "chique" dizer que se trata de um "alegoria".
Algumas pessoas dirão que este livro fala das pessoas, dos seus problemas, de como se as circunstancias fossem diferentes também as suas decisões o seriam, e não de Ficção Cientifica com as suas naves espaciais e laseres, ao qual eu só posso responder que a ignorância é realmente muito, muito triste. Quem assim falar certamente que nunca leu as grandes obras que a Ficção Científica tem para oferecer. Mostrar-lhes ia, e para não sair das viagens no tempo e historia alternativa, pelo menos quatro livros que tem um estrutura muito similar à de "A Manha do Mundo".
Mostrava-lhes "A Segunda Manhã do Mundo" (Presença 2004) de Manuel de Pedrolo, onde depois de todo o planeta Terra ter sido destruidor, por extraterrestres(?), ainda que nada disto seja descrito, os sobreviventes Humanos praticamente se resume a uma rapariga de 14 anos e um rapaz de 9 anos, e do que eles tem de fazer para sobreviver, de como naquele novo mundo as suas decisões de outrora tem de ser revistas.
Mostrava-lhes "E Tudo o Tempo Levou" (Clássica 1992) de Ward Moore, onde nos é apresentado um mundo onde a Guerra Civil América foi ganha pelo Sul, somos levados a conhecer um mundo diferente e igual na mesma medida, mas que devido a um pequeno erro se transforma na nossa linha temporal.
Mostrava-lhes "Eis o Homem" (Saída de Emergência 2007) de Michael Moorcock onde um homem regressa ao tempo de Jesus Cristo, onde descobre que este é um atrasado mental, e não só, e ao invés de deixar que se crie uma nova linha temporal e aceita a cruz de se oferecer em sacrifício para que a historia que ele conheceu continue igual.
Três livros, e mais exemplos poderiam ter sido dados, que muito tem em comum com "A Manhã do Mundo" excepto claro o facto de uns terem assumido o que são e o outro não, escondendo-se de modo covarde e com a conivência de quase todos, sob o rotulo de Literatura Lusófona.
Entristece-me a falta de coragem quer do autor quer da editora em assumir o género da Ficção Cientifica, pois é um dos ricos que existe. Entristece-me que saber que amanha nada terá mudado.

2 comentários:

  1. Meu caro Marco Lopes, foi com (boa) surpresa que me cruzei com este seu texto, até porque essa questão da ficção científica ainda não tinha sido explorada:). Agradeço-lhe o espaço que dedicou ao livro e peço-lhe permissão para colocar uma ligação no blogue do livro para este artigo. E, já agora, vamos ao tema. Este é o local certo. Bom, é normal que tenha acusado de falta de coragem essa gente toda, eu incluído:). É assim mesmo: devemos defender os nossos ponto de vista de forma assertiva. Até percebo a sua indignação: como leitor de ficção científica, sente que a falta de classificação do livro como tal o impediria de o ler se não estivesse atento. Vamos então por partes, porque é um prazer falar do tema. É que eu fui um compulsivo leitor de ficção científica durante alguns anos (antes e pouco depois dos vinte). Ainda um destes dias, ouvindo a incursão da Jennifer Eggan no tema, pensava no bem que me sabia regressar ao género. "A torre de vidro", do grande Silverberg, foi o melhor livro de FC que li (para o meu gosto). Mas gostei do "Tempo Suspenso", do Philp José Farmer e sequelas, de alguns do Heinlein, de muitos outros de que já nem me lembro, até porque os escolhia fora de lista de prémios “Hugo” e “Nebula” (gostava de ter os meus próprios autores). Aiás, teria treze ou catorze anos quando li um livro que nunca mais esqueci: Yargo, da Jacqueline Susan, tantas vezes consideradas light. Foi um livro formador na forma como me rasgou o conceito de tempo. Mas não me sinto com autoridade para classificar o que quer que seja. Mas coragem tenho, no worries:). Em qualquer caso considero os géneros redutores. Gosto de boa literatura e ponto final. Sinto que me compete a mim pressentir o que prefiro no momento. Ainda há pouco li o "Atlas das nuvens", do David Mitchell, um livro premiado que passou despercebido em Portugal (está à venda por uma pechincha), e que considerei muito bom, embora nem sempre, mas que é claramente um livro de ficção científica e não foi assim considerado. Não me maçou, sinceramente. Mas entendo-o. Às vezes apetece-nos ler nova FC e não temos como encontrar quando falham as classificações de género. No caso do meu livro, em rigor, temos os primeiros 2/3 de puro realismo. O último terço, concedo, podia ser perfeitamente considerado ficção científica. De qualquer modo, se por acaso eu quisesse aprofundar a incursão na FC, teria realmente desenvolvido as teorias científicas implicadas. Não quis: os universos paralelos são um mote, a teoria das cordas o modelo da narrativa, nada mais, que até tocam o paralelo prosaico da guitarra de seis cordas. Quis um livro realmente sobre a condição humana, mas aí dir-me-á, e com razão, que quase todos os de FC o são. De acordo. Gostei muito que um leitor de FC tivesse gostado do meu livro como FC. Provavelmente, teremos de arranjar classificações múltiplas para fazer justiça aos vários géneros em que o livro se pode encaixar. Qualquer livro. Mas, se de vez em quando falta realmente coragem a editores e livreiros, e neles grassa muita ignorância, garanto-lhe este não foi um desses casos. Numa coisa lhe dou razão, por experiência própria: há um certo preconceito (eu próprio o tenho) quando um português escreve um livro universal (e nada português). De qualquer modo, foi um prazer entrar no debate despoluído e sincero a que o Marco deu origem. Se eu disse algum disparate, peço desculpa. Continuo um absoluto apaixonado por ficção científica:). Abraço forte, Pedro Guilherme-Moreira

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  2. Caro Pedro Guilherme-Moreira sou eu que lhe agradeço o seu comentário, é uma honra e um prazer recebe-lo no meu blog, e claro que pode colocar uma ligação no blog do livro.
    Gostava de lhe agradecer ter visto para lá do que alguns poderiam chamar de insulto, mas que, claro, nunca foi a minha intenção, muito pelo contrario e o senhor consegui ver isso, talvez por também ser um leitor de FC e saber do que falo. A "culpa" da “classificação não é sua, a Dom Quixote tem um historial de fazer essas classificações e algumas vezes com bastante imaginação, por exemplo o livro "O Quinto Dia" de Frank Scätzing foi classificado com "Eco-thriller" (FC) e o livro que referiu "Atlas das nuvens" de David Mitchell como "Ficção Universal" seja lá isso o que for, mas não são os únicos, a Saída de Emergência publicou um livro da Jennifer Egan “A Ruína” e colou-lhe o rotulo de “Literatura Contemporânea”, num livro do Fantastico, exemplos não faltam, mas acho mais que não são precisos. As editoras “dobram” as regras conforme o publico alvo a quem pretendem vender.
    Existe verdade no que diz, os géneros tem algo de redutor, porque um bom livro é-o independentemente do género em que foi “enfiado”. A questão é que nós, os Humanos, gostamos de classificar tudo, (embora muitas vezes deparamo-nos com “coisas” que são, no mínimo, difíceis de inserir numa categoria, lembro-me do excelente “O Senhor Bentley” da Ágata Ramos Simões, um excelente livro, mas inclassificável, é Fantasia, humor (negro), sátira ou sabe-se lá mais o quê?). Deste ponto de vista a classificação que foi dada ao seu livro, não foi só uma maneira de o “enfiar” numa categoria, mas teve como objectivo dá-lo a conhecer a um publico, possivelmente, mais vasto, do que se tivesse apenas classificado como FC. Não deixa de ser FC por isso, mas se sou o primeiro a criticar, também sou o primeiro a dizer que percebo o porquê das razões que levaram a essa decisão. Se eu fosse editor é provável que tomasse a mesma decisão, afinal um editora também é um empresa e, infelizmente, a FC é actualmente um nicho.
    Também a mim não me maçou em si o facto da “classificação” dada ao seu livro, não foi isso que me fez gostar mais ou menos do livro, é um bom livro e ponto final, mas o que me motivou a escrever o que escrevi foi o principio da verdade, e se escolhi o seu livro foi não só porque gostei dele, mas também o facto de ser Português. Foi para mostrar que em Portugal afinal não são só os “suspeitos do costume” a escrever FC, existem outros e são bons.
    Diz que o seu livro é 2/3 de puro realismo, mas existem livros de FC que ainda tem mais realismo, mas não deixam de ser visto como FC. Não existe mal em dizer que um livro se insere na FC, ou no Romance, no Terror. Quem contesta, por exemplo, o grande livro que é “1984” de George Orwell? Ou “451 Fahrenheit” de Ray Bradbury? Ou o “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley? Todos Grandes classicos da literatura, e todos de FC. Portanto chegamos a uma questão mais profunda, porque é que estes são chamados Classicos enquanto outros são relegados para o nicho de classicos, mas apenas de FC? Livros como o fabuloso “Duna” do Frank Herbert? Ou o “Neuromante” de William Gibson? Ou “O Homem do Castelo Alto” de Philip K. Dick? O que é que os distigue? Não acredito em respostas faceis, e muito menos neste caso, mas a pergunta fica feita.
    Esta questão é (quase) uma pescadinha de rabo na boca, mas se escreci o que escrevi foi e é porque sei que o género da Ficção Científica contem algumas das mais belas obras que o Mundo já viu, Historias que mostram o que é ser Humano, melhor que muitos ensaio de filosofia e entristece-me saber que elas são ignoradas.
    Obrigado pelo “conversa”, quem sabe se em breve não nos encontramos "ao vivo e a cores" e falamos com mais profundidade deste e outros assuntos. Apareça sempre que quiser, é um prazer receber pessoas como o senhor.

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